13 de janeiro de 2016

Tiro, porrada e bomba. Em dois atos.

Primeiro ato.

[Sugestão de trilha sonora para acompanhar a leitura: Causa Sui - Summer Sessions Vol. 1-3]

– E ai, vai à manifestação?, me perguntaram no banheiro do trabalho.
– Nem vou. Você vai?
– Vou sim. R$3,80 né, um bom motivo pra se manifestar...
Sai do trabalho umas 18h30. Entre trocar de roupa, colocar o capacete, as luvas e a trilha sonora da volta pra casa, pensei que seria interessante desviar o percurso habitual da ciclovia e passar pela manifestação e observá-la.
De boinha, subi a Rua da Consolação. Não pretendia participar da manifestação – e “participar” é o verbo mais usado na atualidade, quando se confirma a presença num evento, muitas vezes “mais curtido” do que representado. 
Ao meu lado, também numa bicicleta, subiu um cara. A princípio, acelerei. Sou uma mulher. Nem frágil, nem menos desconfiada. Desde o início da rua tinham policiais. – Qualquer coisa eles me ajudam, certo? Não. Qualquer coisa eu grito – pensei.
Começamos a trocar ideias. Ou melhor, ele começou a me acompanhar e falar comigo.
– O Brasil está se afundando..., dizia. 
Senti que a Consolação nunca foi tão curta, pois subíamos no meio da rua...
 – Vamos aproveitar enquanto hoje a rua é nossa! – eu disse.
... e a prosa tomou um rumo interessante. Ele concordou, mas nos mantínhamos sempre olhando pra trás. É o hábito de ciclistas, de pedestres e, mais, de mulheres que costumam andar sozinhas pelas ruas.
No percurso falamos sobre o Brasil, os brasileiros, o aumento das passagens, as férias...
Edson – o cara se denominou assim –, com seus quarenta e tantos anos, sinalizados pelas rugas e sinais de expressão de quem trabalha há muito tempo – poderia até ter menos idade – e eu, com meus vinte e seis anos e filha de uma típica classe média, bem criada, sinalizados pelos bons dentes.
– E por que o Brasil está se afundando? – digo discordando. – As pessoas nunca puderam adquirir mais bens, ser mais consumistas, como hoje. Porque é isso que a economia avalia...
– Não entendi, desculpe. Você pode me explicar?
– Claro, quero dizer que hoje em dia muitas pessoas podem comprar coisas que há alguns anos elas não podiam. E quando falamos que o país está em crise ou não, um dos motivos de se dizer isso é porque as pessoas têm consumido, comprado, mais ou menos...
– É que nós, estamos falando de nós, brasileiros. Nós afundamos o Brasil e para que nós fazamos um país melhor não precisamos consumir se o país está em recessão. Só tou de bicicleta porque tou de férias. Semana passada tava na Praia Grande.
– Que delícia, heim...
– E fui de ônibus. E levei essa aqui – disse, batendo carinhosamente na magrela.
– E pra quê carro, né?...
E conversa vai e vem, chegamos ao cruzamento central do Brasil, a Rua da Consolação com a Avenida Paulista... – é o que pensam muitos dos paulistanos – Centro que um dia, para Caetano, foi a Avenida Ipiranga e a Avenida São João. E ainda mais auspicioso que Caetano foi Juscelino Kubitschek criando uma capital no cu do mundo. Digo cu por ser o centro do corpo humano – basta ficar um dia sem cagar que ficamos deveras enfezados –. Além disso, fazer merda é natural do Homem e quem disse isso, de uma forma ou de outra, não fui eu, e sim Kundera, que cito seguindo rigorosamente as normas (sem aspas, com mais de três linhas)

A merda é um problema teológico mais penoso que o mal. Deus dá liberdade ao homem e podemos admitir que ele não seja o responsável pelos crimes da humanidade. Mas a responsabilidade pela merda cabe inteiramente àquele que criou o homem, somente a ele. [...] Se, ainda recentemente, a palavra merda era substituída nos livros por reticências, isso não se devia a razões morais. Afinal de contas, não se pode considerar que a merda seja imoral! A objeção à merda é de ordem metafísica. Defecar é dar uma prova cotidiana do caráter inaceitável  (e, nesse caso, não precisamos nos trancar no banheiro), ou Deus nos criou de maneira inadmissível. Segue-se que o “acordo categórico com o ser” tem pode ideal um mundo no qual a merda é negada e no qual cada um de nós se comporta como se ela não existisse. (KUNDERA, 1985, 247-250).

Despeço-me de Edson.
– Você tem um telefone em que a gente possamos se falar? – E veja aí a merda...
– Já valeu nossa conversa de hoje, né Edson...
– Me desculpe, obrigada pela conversa. Agora quero ver como é que vou fazer pra cruzar, pra seguir meu caminho...
– Tchau tchau.
Edson não sabe, mas pensei o mesmo que ele. – Como é que vou fazer pra cruzar pro meu caminho? – . Na dúvida, parei pra observar a paisagem, um mundaréu de gente com cartazes, máscaras de gás e voz. Criei o seguinte enredo na minha cabeça. Os manifestantes driblariam o policiamento militar e a tropa de choque. Ao invés de descer a Rua da Consolação, o que já era esperado, desceriam a Avenida Rebouças, uma das vias arteriais da cidade, representada majoritariamente pela presença dos automóveis, além de ser a via que homenageia o André. André? É o André Rebouças, o André engenheiro, o André representante da classe negra em ascensão durante o Segundo Reinado, o André abolicionista. São tantos e é o mesmo. Atualmente esquecido, pobre – de nós! . E lamento a história ser vista por um só lado. E também lamento que caia no esquecimento das cotidianidades. O que somos nós se não as Histórias e histórias e estórias... Como essa que lhes conto.

André Rebouças (1838-1898).

Eu, tão inocente, pura e besta, me propus a estacionar a bicicleta numa esquina infeliz, acender um palheiro para pensar, assim como quem espera um ônibus sem pressa nem atropelo, até conseguir solucionar meu caso de vida ou morte desses minutos. – Como atravessar a rua?.
Já me era sabido que esse cruzamento... – melhor, encruzilhada – Já me era sabido que essa encruzilhada estaria saturada de gente e expectativas. Eu poderia ter seguido outro caminho, a ciclovia central, e a essa hora – a que escrevo – já estaria em casa. Mas não. Nem sempre escolhemos – escolho – o caminho mais fácil – ou menos interessante. Escolhi subir a Rua da Consolação, escolhi seguir todo o trajeto na companhia de Edson, escolhi observar os manifestantes. Escolhi estar aqui, agora. Num bar de uma praça central de São Paulo, entre a Avenida São Luis, a Rua Dr. Bráulio Gomes, a Consolação, a mesa e um copo americano de cerveja. E a história será narrada até aqui. Prometo! Tentarei conservar uma emoção a essa narrativa. A emoção que cabe a um dia vivido e sentido a plenos pulmões, olfato, lágrimas e coração. Um dia vivido por mim. Ser eu pode se tornar bastante interessante.
Imagino ter dado uns dois tragos e, como esse cigarro apaga quase mais rápido do que a velocidade da luz – pensa a fumante –, estava ali mais para conservar a cena na história da memória. Permaneci ali até toda minha inocência se transformar em adrenalina. Ouvi tiros e projéteis – de borracha – caíram na minha frente. E fumaça, muita. E gente, muita gente correndo. Corri. Estava com a bicicleta e corri. Corri até não ser atropelada pelos pedestres. E parei. Guardei o cigarro, sem ter certeza de que estava completamente apagado – e torcendo para que estivesse –, e o isqueiro e a angústia. Joguei tudo dentro da mochila e pedalei, muito rápido. E voei. E como no percurso da ida, os olhos sempre se voltavam pra trás. 
Nisso, o gás lacrimogêneo já tinha impregnado em meus poros. Passado pelas unhas do pé, pelo cu, até às últimas pontas do fio do cabelo. Pedalava o mais rápido que podia entre pedestres, chorava, lacrimejava, limpava os olhos que ardiam, engasgava e cuspia. Cuspi muito, tanto quanto corria. Tive que parar. Parei. E um enviado de Deus veio até mim – Aleluia! – e com um recipiente azul na mão, disse: 
– Bocheche! E vá ser gauche na vida... – Ou seria enviado de Drummond?
Não sou gauche, nem droite, nem rien. Fujo das bivalências. Mas ao mesmo tempo sou delas. Tout. E sendo, penso. Ou vice versa. Versa vice. A questão é que não há espaço na vida para ser gauche desde a institucionalização do capitalismo no século XIX. Não há espaço para o gauche ser na vida. E sem tempo pra pensar, tomei o líquido branco oferecido por um estranho em meio ao desertar da manifestação. Como me instruiu o enviado, bochechei e cuspi e revigorei e pedalei. A questão é: quando estamos entre cúmplices, nos acreditamos. Pois bem acreditem, advertem o enviado e a desertada: usar leite de magnésia em confrontos com a polícia faz bem à saúde. E nunca se esqueçam – principalmente você mulher – mantenha sempre os olhos pra trás.
Num certo momento, nos segundos de menos enfrentamento, peguei o celular na pochete e liguei pra uma amiga. Ela tinha saído antes do trampo e presumi – pelo que sei que ela acredita – que ela estaria na manifestação. Além da preocupação que tenho para com meus amigos, queria chamá-la pra tomar uma cerveja – para isso também os amigos são ótimos. Porque, lhes digo com toda sinceridade, depois de lágrimas lacrimogênicas com leite de magnésia e sentir vomitar meu coração, não poderia ingerir outra coisa que não cevada. Só uma cerveja curaria o trauma e conservaria a história.
Ela não me atendeu. A preocupação manteve-se estável e segui pedalando à frente da Consolação e olhando sempre - sempre - sempre pra trás. Não nos era permitido retornar – agora já me considerava uma manifestante –, nem pegar as ruas paralelas. Em frente, sempre em frente. Marche! Como a manada que somos. Porém, entre os animais sempre há os rebeldes e entre rebeldes sempre há uma brecha. Uma porção de gente contornou a Rua Sergipe, a de baixo do Cemitério da Consolação. Eu, nessa frequência da vida, faço parte dos parvos. E como boa parva que sou, não acompanhei esse movimento de desgarramento, descia cegamente a rua. Estava do outro lado da avenida. Mas como tudo se passou em segundos, pensei que talvez fosse interessante virar na rua seguinte, pois ao fim da Consolação haveriam tucanos trajados de urubus a nos esperar.
A Rua Dona Antônia de Queirós foi a escolhida. Viramos, eu e mais outras poucas pessoas. Não sabia mais distinguir os manifestantes, dos repórteres, dos pedestres e dos black blocs. Na rua, muitos deles chutavam as caixas de lixo e faziam barricadas com elas. Pedalei por esse quarteirão e desci na Rua Itambé. Próxima à esquina, vi alguns carros de polícia passar na Rua Sergipe, agora a paralela. Parei para pensar por alguns segundos – que se tornaram milésimos de segundos, pois percebi que havia parado exatamente em frente ao apartamento que morei poucos meses atrás. O desfecho dessa história não importa. É outra história. O que seria relevante de ser narrado, e que desencadearia a sucessão de frames da vida, será. Mas, para todos os efeitos e manutenção do enredo, precisarei dizer que não foi um lugar do qual eu tenha saído amigavelmente, daí o súbito desejo de me afastar, inclusive, da calçada do prédio desse apartamento. Não permaneceria ali nem para respirar. Milésimos de segundos se passaram.
No quarteirão de cima havia a polícia, na calçada onde estava havia o rancor. Só poderia fazer um movimento de descida, que foi bastante espontâneo diante das adversidades desses últimos frames de vida. Desci. Não obstante, os infortúnios não bastaram e, espontânea, a vida se mostrou. Ao descer a rua, fugindo da polícia e do desassossego, vejo outras memórias fugirem do outro lado da rua. Vejo Ele. Sem mais nem porquê. – Essa história se situa em São Paulo, se lembra? É importante situar a dimensão dos fatos. Incalculáveis, penso, quando se tratam de assuntos do coração. Minutos atrás eu fugia da polícia, inalava gás lacrimogêneo, chorava forçadamente e cuspia leite de magnésia. E agora… vejo um amor do futuro do pretérito. Vi o amor ao cruzar a rua e, rindo despretensiosamente, não exitei em parar. Parei. Desci da bicicleta. E sorri.
Ele falava ao celular – imaginei ser sua companheira –. Me viu. E parou. E olhamos pra trás. E sorrimos. E caminhamos. E fugimos juntos de uma polícia que cumpre ordens e persegue cidadãos gauches – até que se prove o contrário –. Entre os sentimentos mais brutais de que tenho conhecimento, me vi: a violência e o amor.

[Haverá continuação]

4 de novembro de 2015

A melhor hora da Praia


Bonito,

Bonito foi nos conhecermos. Eu escrevendo, contemplando o mar. Você, do bar, contemplando a mim e ao mar. “Tienes una sonrisa muy hermosa”. Sorri. “Salgo a las doce, ¿te gustaría tomar una cerveza?”. “Sí”. 
Entre conversas sobre la música y la escritura, cervezas y sonrisas “me dijo que dormía temprano pues no llevaba una vida de turista”. Pensei nisso durante meu último dia na ilha, um dia de turista. Como ya lo sabe, viajé sola. Pero en muchos momentos de mis trilhas no permanecí sola. Este fue el único día que logré hacer eso. A melhor hora da praia.

Desperté temprano, antes del desayuno y me puse a escribir. El hostel Sitio Green, en el que estuve el último día, es fantástico. Una finca en el medio de la floresta. 
Un sitio tranquilo y a mí me parece que te gustaría trabajar allí. Tendrías incluso tiempo para entrenar el sax. Después de muchos cigarrillos e inspiraciones, desayuné tranquilamente aprovechando el lugar y los sabores de las diversas mermeladas. 

Después salí, destino Praia Preta.
Já tinha percorrido por ali no dia anterior, mas quis explorar melhor o lugar, desta vez sozinha. Tirando fotos e conclusiones. Durante o trajeto, vi alguns papeis e embalagens deixadas pelo chão. Comecei a recolhê-los e quando me dei conta já estava com a sacola plástica, também deixada no chão, llena de basura.
Lazareto - Ilha Grande/RJ
Esse passeio teve um ar de magia e traquinagem. Segui pela praia, mas vi entre as pedras umas trilhas mais escondidas. Me meti a explorá-las e encontrei vários resquícios das ruínas do Lazareto. Muralhas e escaleras de pedras cobertas pela mata. Fiquei maravilhada. Deixei meu corpo ser invadido pela atmosfera de aventura. Ao tentar me equilibrar numa pedra para tirar uma foto, escorreguei e cai. Ralei meu braço e me sujei de terra. Ri alto. 
É interessante lidar com o medo e o desejo. E me recordei de um poema que seu homônimo Alejandro Zambra, o autor chileno, escreveu no livro Formas de voltar para casa, àquele que você me via ler:






É melhor não sair em nenhum livro
As frases que não nos queiram abrigar
Uma vida sem música e sem letra
E um céu sem essas nuvens que agora
Você não sabe se estão indo ou vindo
Essas nuvens quando mudam tantas vezes
De forma que ainda parecemos estar
Morando no lugar que abandonamos
Quando ainda não sabíamos os nomes das árvores
Quando não sabíamos os nomes dos pássaros
Quando o medo era o medo e não existia
O amor pelo medo
Nem o medo pelo medo
E a dor era um livro interminável
Que um dia folheamos só para ver
Se no final apareciam nossos nomes

Todo el viaje fue muy simbólico, como te lo dije. Y en pocos días me ayudaste a aclarar muchos pensamientos y a ver otras formas de vivir. "¿Qué hiciste hoy?". Me encantó cuando te enseñé la piel de culebra que encontré en la trilha y tú dijiste que se asemejaba al mapa de la América y también a mí, cambiando de piel.
Conversei com muitas pessoas durante a viagem e quando lhes perguntava alguma ideia de passeio para o dia, elas me indicavam o lugar onde tinham a melhor vista da ilha. Foram diversas melhores vistas. Hoje, no meu último dia aqui, encontrei o meu lugar. Quase ao fim da Praia Preta, encontrei uma trilha que me levou a algumas pedras gordas e altas, com um musgo verde vivo. Sentei numa delas e contemplei a vista por um longo tempo. Vi muitas conchas grudadas nas pedras. Y después de casi dos años, encontré el momento ideal para fumar mi proprio porro. Hecho por mí misma. Temblaba. Fue una mescla de sensaciones, libertad y  seguridad y miedo… Uma borboleta amarela cruza pela minha paisagem... Tudo significa.


Praia Preta - Ilha Grande/RJ
Sai dessas pedras pelo mar. Encontrei outro lugar ideal embaixo de umas árvores baixas, como arbustos, sobre um rochedo das ruínas do Lazareto. Deixei encostados nela a sacola de lixo, a mochila, a roupa e os chinelos. Ao redor, havia algumas pessoas na praia e umas poucas ruínas. Um velho cais implodido, provavelmente. Joguei meu corpo e desejos no mar.


Entrei bem devagar para contemplar cada passo, percebidos claramente diante da limpidez da água. Isso foi o que mais me deixou abestalhada na ilha. A limpidez das águas dos mares que a circundam. Sim, mares. Pois cada praia é particular. Mudam os tons de cores e sabores de sal. Dá para ver os peixes, as conchas e muito do bioma marinho, se contemplá-los com cuidado e abrir os olhos para outros universos. Muitas pessoas divagam em pensar se há seres extraterrestres. – Não sei, provavelmente. – Mas não se dão conta de todo o universo que há no nosso próprio habitat. Me diverti observando as conchinhas.
Mergulhei e pude ver também o reflexo de minhas mãos na água. Como se olhasse para um espelho, de baixo para cima. Estava plena. Sensação incrível. Há uns 200 metros havia pedra no meio das águas do mar – calculo. Já havia observado algumas pessoas nadarem até lá e quando não tinha mais ninguém nadei até ela. Lapidada pelo mar na parte superior, mas bastante áspera nas laterais. Essa inclusive foi uma das queixas que ouvi dos companheiros de trilhas “as pedras são bem ásperas por aqui, tenha cuidado”. Nesse momento, agradeci. Algumas asperezas são necessárias. As da natureza, somente. Quando cheguei na pedra, excitada de adrenalina e de marihuana, gritei naturalmente: Terra à vista! Gargalhei de mim. É bom rir de si, por isso vivo sorrindo. Das situações e acasos que vivo. Para me livrar de certas asperezas não naturais.
Deitei na pedra e deixei as ondas me lapidarem também. “Llegué”. Gozei. Já fazia uns dias que eu não alongava as costas – um dos maus de se dormir em beliches. Já deitada na pedra, levantei as pernas para cima, forcei a lombar e levei as pernas e os pés para trás da cabeça. Um tesão sentir meu corpo todo se esticando. Trouxe as pernas de volta, mantive-as para cima, num ângulo mais ou menos de 90 graus, e estiquei o máximo que consegui. Depois desci as pernas, deitei novamente e levei meu tronco até o joelho, abraçando os pés. Deitei novamente, as ondas me fizeram escorregar um pouco, e senti que era hora de voltar à areia.
Nesse meio tempo, com infinitas coisas para brisar, você me veio à cabeça, Alejandro U. “Soy argentino pero el apellido es vasco”.
Pensei no trajeto que você disse fazer todos os dias a nado. Energizante! Não pude deixar de pensar também em nossa breve despedida. Estava difícil deixar a Ilha e arranjei desculpas para permanecer mais tempo nela. A primeira foi o ônibus, que deixei, propositalmente, para comprar de última hora e quando vi – quando vimos –, sexta à noite, não tinha mais vaga num horário depois das 18h. Fiquei mais um dia e foi providencial. Esse dia foi hoje. O meu dia. A melhor hora da praia.
A outra desculpa seria passar o dia contigo, porque “los martes son meus dias de folga”. Nesse tempo em que fiquei na pedra, algumas coisas ficaram mais claras. Pensar em escrevê-las deixou tudo mais límpido, como o mar. Sou uma mulher das palavras escritas. Quando propus a você que passássemos esse dia juntos, queria experienciar o dia com você. Como você vive seus dias na ilha. Como acabei também vivenciando a rotina de outras pessoas da ilha. “No quiero envolverme con nadie”, me disse. “Yo tampoco”, respondi. No entanto, já estávamos envolvidos. No quisiste. Talvez tenha sentido medo, miedo. Ya te había dicho que tampoco quería envolverme con alguien. Não tenho como. Você também não. Estás para la música como estoy para la escritura. Estamos para la vida. Solo me gustaría que hubiera tenido confianza en mí. ¿Comprendes? Pero no dice que no me enamoraría de ti. Me suena diferente. Pienso que la vida es para ser vivida con pasión. Lo siento, pero me enamoro de las personas que piensan. Además de eso, de tu miedo solo concluyo que yo soy una persona apaixonante. Tu también lo es. Fomos. Fuimos.
Queria nadar da praia de Abraão à Julia, de Julia à Crena – e poder ver à luz do dia a praia onde transamos à luz do luar –, e de Crena à Abraãozinho. Sentir o tesão de nadar com você e te ouvir algumas horas mais. Depois, voltaríamos pela trilha, molhados e suados. Você cozinharia para nós seu prato preferido e enquanto estudava música, eu começaria a ler Siddhartha, de Hermann Hesse, e escreveria poemas. Por la tarde me iría a Sitio Green, arreglar mis cosas para partir. Sin embargo, nos quedaron abrazos, besos y cansancio. “Boa vida!”. “¡Buena vida!”.  
De volta à areia, traguei deliciosamente um cigarro. Senti vergonha, depois de tudo que acabara de fazer. Nadar, alongar... Ainda não tenho vontade de parar. Talvez mude para o palheiro. Talvez. Uma hora isso acontecerá naturalmente, como a vida deve ser. Ou não? Mas me pego a pensar que fumando só estrago – conscientemente – a mim. E a minha frente vejo a sacola cheia dos lixos que encontrei pelo caminho. As recomendações de saúde giram em torno do discurso da hipocrisia. Por isso recolho lixos e fumo cigarros.
Fechei o cuaderno de ideas – o mesmo que você escreveu o nome de Aníbal Augusto Sardinha, Javier Malosetti & Negro Rada – e me joguei no mar para um mergulho de despedida. Energizante. E segui meu rumo, hoje com um destino mais certo e cronometrado.
Me troquei na trilha, tirei ainda uma porção de fotos e fui comprar regalos para mi família. A loja Artesanato é incrível. Uma casa de fachada amarela com janelas azuis, bem próxima ao cais por onde sai a barca. Além de esculturas, cangas e lenços muito bonitos, ela tem logo na entrada uma prateleira com instrumentos musicais. Segundo a vendedora, a maioria dos artigos da loja são importados da Indonésia. Os instrumentos também são. Comprei dois, não resisti. Mais uma das tantas lembranças da ilha. Uma flauta de bambu e um tambor de mola grande, o mais manêro, pues ele imita o som do trovão, truenos, se você o coloca mais longe do ouvido, e das ondas do mar, olas, se o coloca encostado. Ele é feito de um papel bem grosso e tem formato cilíndrico. Numa ponta é fechado com plástico e do meio desse plástico sai uma mola larga, de uns 30 cm. Curiosamente, gostei do primeiro que peguei pelo som e por ter nas pinturas tons de verde, minha cor preferida. Depois, observando-o de novo, me dei conta de que tem um lagarto desenhado de estampa. Tenho simpatizado com as metáforas dos répteis, cobras e lagartos.
Depois que almocei, segui em direção ao Sítio, o hostel que passei esse último dia. Lugar fantástico. Posso dar mais detalhes numa outra correspondência, porque algo mais fantástico aconteceu em seguida. Caminhava na rua Profa. Alice Kuri da Silva, a rua da igreja, e ouvi um barulho de serra na primeira rua à direita, numa das paralelas da Rua da Praia. O som vinha de uma marcenaria. A marcenaria do Maurício. Ele é badjeco – nome que se dá aos nativos de Ilha Grande ou que moram nela há mais de 9 anos. Parei em frente à loja e o observei trabalhar. Muito simpático, disse para eu olhar à vontade. Agradeci sorrindo. Reparei que bem na frente da loja, à esquerda, havia uma mesa cheia de livros. Ao lado dela, uma caixa também cheia. Na conversa, Mauricio me disse que num sonho ouviu alguém dizer a ele que tirasse os livros da estante e os pusesse à mostra, na cara das pessoas. E assim ele iniciou seu projeto. Ele propõe que cada pessoa pegue o livro e passe-o para frente, para outro leitor, e deixe um de seus livros na mesa. Essa é a segunda vez que expunha os livros, a primeira vez foi em frente à igreja.


Me aproximei da mesa e de cara vi O fio das missangas, de Mia Couto, autor moçambicano. Tive uma vaga lembrança de dois amigos comentarem sobre Couto na mesa do bar, em São Paulo. Fiquei com ele e fiz um acordo com Maurício: “Vou levar esse livro, mas me passe seu endereço – su dirección – que te enviarei o meu” – pensando no livro que vou escrever sobre essa viagem, como comentei com você. Endereços trocados, nos despedimos. “Quem sabe não te trago o livro e te entrego em mãos Maurício...”. Ele sorriu e disse que aguardará.
Ao olhar o livro, vi que a página estava marcada pela orelha no conto “O rio das Quatro Luzes” e logo na primeira linha, uma adaptação de um provérbio moçambicano dizia “O coração é como uma árvore – onde quiser volta a nascer” – El corazón es como un árbol – donde quieras vuelve a nacer.
Não sabemos por onde os acasos nos levarão. Estou descamando e uma nova pele se cria. Não te esperarei. Pero sería lindo (re)conocerte en otro lugar y vivir los días contigo, escribiendo y escuchando las canciones de uno que un día fue el único saxofonista de la isla. Viviendo nuestra madurez.

¡Buena vida!

Com amor,


Bonita.

10 de outubro de 2015

Romance experimental

Foi uma noite breve, mas intensa.
Entre peixes, pássaros e planos, desfiz impressões emplastadas de mim.
Te vi, estranho.
E contemplei teus feitos, anseios e beijos.
Te li e atribui ao seu sentido coincidências.
Ruborizei.
Em nós não caberiam confidências, mas trocas de experimentos, livros, ideologias e fluídos.

Contornos de um romance experimental.

São Paulo, 06 de outubro de 2015.

Teste do coração ou borboletas amarelas

[Sugestão de trilha sonora pra acompanhar a leitura: Tiganá Santana - Tempo & Magma (Ajabu!)]

− Altura?
− 1,70.
− Peso?
− 65, eu acho.
− Você se alimentou direito?
− Sim.
− Pratica exercícios?
− Sim, ando de bicicleta pelo menos quatro vezes na semana.
− Você fuma?
− Sim.
− Pode-se deitar de lado. Vou colar esses eletrodos no seu peito e começar o exame. Você já fez ultrassom?
− Sim.
− Esse exame é como um ultrassom, passo esse gel e tiramos um ultrassom do seu coração.
− Tudo bem.
− Vamos começar.
Entre o porquê deu estar fazendo esse exame, o clima e outras corriqueiridades, conversamos.
− Doutor, existe coração pequeno?
− Existe, é raro, mas existe. Fazendo uma analogia um pouco superficial, é como se uma pessoa de dois metros de altura calçasse 35. Os pés são proporcionais ao tamanho do corpo como o coração. Até pode existir um coração menor, ou pequeno, mas o coração é do tamanho necessário para comportar sua função, seus batimentos...
− Meu pai dizia que tinha o coração pequeno, mas nunca perguntei [não deu tempo de perguntar] se ele falava brincando ou se de fato foi diagnosticado com o coração pequeno...
− Bom, esse aparelho que estamos usando tem 1 ano. Ele é muito eficiente e podemos medir com certeza o tamanho do coração. Antigamente, os recursos eram escassos, talvez os diagnósticos não fossem tão precisos... Já estamos quase acabando, só vou ouvir seus batimentos.
Ouvimos meus batimentos e, nesse instante, um filme da vida passou pela minha cabeça. Lágrimas tímidas caíram no travesseiro. Ouvi meu coração. Foi a primeira vez que o ouvi e o vi bater. Eu me vi por dentro, vi o mais humano de mim. O órgão da vida e o que acredito guardar os sentires. Penso que é porque ele de fato sente. Processamos os sentimentos no cérebro, claro, mas o coração sente. Ele constata o sentimento. Quando nervosos ou apaixonados, ele pulsa com toda sua puissance, parecendo querer rasgar o peito. 
Nem por um ou outro, vi meu coração pra fora, na minha mão. Mole e ensanguentado, ele pululava. E eu o apertava mais e mais, porque queria sentir a dor na sua materialidade. Queria sentir uma dor física num lugar onde ela tem sido sentida tão abstratamente. A ausência física do meu pai me causou um imenso vazio... Me deixou oca. 
Um dos ensinamentos que traz uma morte é ver que há muita vida. Ou vidas. Tudo vive, talvez não no conceito mais biológico do termo, mas tudo carrega uma energia. Se num dia extremamente quente você se depara com uma pedra bem grande numa sombra e se deita sobre ela, você, se sábio, consegue sentir um choque de temperatura, de energia. Ela vai te refrescar e você pode aproveitar dessa troca e sentir na pele sua vida.
Vazia, oca e um pouco louca, abri meus olhos (e coração) pras vidas ao redor, como uma busca de preencher um espaço impreenchível. Às vezes é preciso resignificar a vida. E entre perceber e desfrutar de céus azuis da capital (por vezes raros, tornando-se mais dignos de serem percebidos) e da delícia que é o vento batendo no meu rosto quando ando de bicicleta, percebi por muitos dias a companhia de uma borboleta amarela. Se meu pai era cheio de vida, “era vida que se via em você”, e amante incondicional da natureza; se a energia se transforma; se levo comigo a necessidade de certas materialidades; e se me encontro por vezes perdida em sentimentos e ausências, assumi a borboleta como companhia e passei a chamá-la de Pai, o borboleto. 
Vi nisso um sentido. As borboletas vivem brevemente seu um mês com intensidade, perpassando por todos seus ciclos. Sua vida é breve, mas bela. A vida de meu pai também foi breve, mas intensa. E Pai, o borboleto, tem me mostrado que tudo é finito, mas que o fim não significa perda, pois ainda que nos afastemos do passado, ele nos constitui e nos ensina e ampara no adiante...
Pai, o borboleto, passou pela minha janela segunda-feira para desejar boa sorte. Estava, dessa vez, alaranjado. Talvez quisesse me abrir pras mudanças que estavam por vir. Novos ciclos, novas vidas...

São Paulo, 04 de outubro de 2015.

Sentidos

Certa vez ouvi ao pé do ouvido, envolvida em braços e em lábios dançantes, num salão de tacos mogno deslizantes, e ao som de uma sanfona sentida – https://www.youtube.com/watch?v=hYe7nmtVC_g – que íntimo era um convite para se conhecer uma coleção de discos.
“Um equívoco” – pensei.
Se não houver – em mim – a satisfação e deleite de um beijo, tampouco chegaremos à coleção de discos e, muito menos, alhures... à cama.
Não há lugar no qual eu me entregue mais que num beijo. Nele recupero todos os sentidos e, ao mesmo tempo – se bom – os perco.


São Paulo, início da primavera de 2015.